quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Grande tolo

Ryōkan Daigu é uma das figurinhas mais lendárias e simpáticas do zen japonês; uma espécie de eremita e errante, um tanto avesso à vida sacerdotal, vivendo em sua cabaninha de telhado de palha. Nome de monge bem dado ("grande tolo com um bom coração"): Ryōkan gostava de tomar umas biritinhas com os camponeses da vizinhança, ou então sozinho, escrevendo poemas em sua cabana - pelos quais ficou conhecido, mais tarde. Também gostava de brincar com a criançada, e conta-se que muitas vezes esquecia de fazer a sua ronda de esmolas, de tão entretido que estava - e ficava sem comer. Seu professor realmente soube escolher um nome-do-dharma à altura.

Estes são os "59 itens que Ryōkan compilou para ter o comportamento à altura de um monge budista, lembrando, como mestre Chao-chou dizia, o budismo não é o que a pessoa prega ou fala, mas o que faz. É notável que a maioria de suas auto-impostas advertências estão ligadas ao ato de falar [....]"

"Tomar cuidado para:
- não falar demais;
- não falar rápido demais;
- não falar sem alguém perguntar;
- não falar gratuitamente;
- não falar com as mãos;
- não falar sobre assuntos mundanos;
- não retorquir rudemente;
- não discutir;
- não sorrir condescendentemente às palavras de outros;
- não usar expressões chinesas elegantes;
- não se vangloriar;
- evitar falar diretamente;
- não falar com ar de quem sabe tude;
- não pular de um tópico para outro;
- não usar palavras enfeitadas ou pomposas;
- não falar de eventos passados que não podem ser alterados;
- não falar como um pedante;
- evitar perguntas diretas;
- não falar mal dos outros;
- não falar grandiloquentemente da iluminação;
- não fazer bagunça quando bêbado;
- não falar de forma desprezível;
- não gritar com crianças;
- não tecer histórias fantásticas;
- não falar quando zangado;
- não deixar subentender nomes importantes;
- não ignorar as pessoas a quem você está se dirigindo;
- não falar santimonialmente dos deuses ou dos budas;
- não usar discurso adocicado;
- não usar discurso adulador;
- não falar de coisas das quais você não tem conhecimento;
- não monopolizar a conversa;
- não falar de outros pelas costas deles;
- não falar convencidamente;
- não denegrir os outros;
- não cantar rezas ostensivamente;
- não reclamar da quantidade da doação;
- não dar sermões muito eloquentes;
- não falar afetadamente como um artista;
- não falar afetadamente como um mestre do chá;
- oferecer incenso e flores para os budas;
- plantar árvores e flores, limpar e aguar o jardim;
- regularmente usar moxa para as pernas;
- evitar peixes oleosos;
- selecionar comidas leves e evitar comidas gordurosas;
- não dormir demais;
- não comer demais;
- não dar uma cochilada muito longa à tarde;
- não ficar exausto;
- não ser negligente;
- não falar quando você não tiver nada a dizer;
- não esconder nada em seu coração;
- sempre beber o saquê quente;
- raspar sua cabeça;
- aparar as unhas;
- escovar os dentes e usar um palito de dentes;
- tomar banho;
- manter sua voz clara e nítida."

"[....] Mestre Ryōkan estava sempre esquecendo as coisas. Um número de cartas a seus amigos sobreviveu, cheia de desenhos de objetos que ele havia esquecido em algum lugar e lhes perguntando se eles haviam visto os objetos em questão. Às vezes ele mendigava na mesma casa, duas vezes no mesmo dia, tendo esquecido sua visita anterior e era repreendido pela dona da casa por ser cobiçoso. Aqui está uma outra lista que ele fez:

Coisas para levar com você: chapéu de algodão, toalha, tecido, papel, leque, moedas, bolinhas de gude e bolas de jogar.
Necessidades: chapéu de bambu, material para a perna (como uma meia), luvas, cinto, bastão, manto pequeno.
Para peregrinações: roupas, capa de chuva de palha, tigela, saco.
Lembrete: tenha certeza de ler isto antes de sair ou você vai ficar em apuros!"

entre aspas: da revista Flor do Vazio, ano 7 vol. 1, verão de 2003; pg. 72

sábado, 6 de novembro de 2010

Falar, instruir, e as cercas de roseiras-bravas


Há uma dificuldade bem clara em falar do "dharma": qualquer declaração fixa sobre ele parece sempre a ponto de resvalar e surgir em um outro lugar transmutada exatamente no contrário, que por sua vez pode ir passear nas ilhas Cayman e deixar você em apuros com a Receita.

É fácil instruir os outros a respeito do zazen - como fazê-lo, que problemas encontrar, como lidar com eles. Aliás, instruções sobre o "verdadeiro zazen" da nossa escola Sōtō - o shikantaza - acabam sempre monotemáticas e soam as mesmas em todo lugar, diferenciando-se somente pelo estilo peculiar de cada pessoa que instrui.

Graças ao meu bom daimon eu somente instruo pessoas com relação ao zazen, e nada mais. Posso ir apenas até onde a minha experiência pessoal sugere similaridades; piso somente em terreno conhecido, e sugiro a outros que venham conhecê-lo.

Alguém que tenta falar sobre o "dharma" sem conhecê-lo, por mais inteligente que seja, acaba sempre se metendo em confusões - verbais ou não. "Conhecer o dharma" não se trata de conhecer uma doutrina ou teoria, e de saber argumentar da "maneira certa" com relação a ele: conhecer o dharma é ter os seus olhos trocados por olhos de um Buda, como dizia Dōgen zenji.

(Neste sentido as "palestras do dharma" ou teishō de um professor podem soar como óbvios, ou até mesmo tolos.)

Instruir os outros, mesmo da forma mais básica, é como cortar caminho em mata cerrada, abrir picadas. Você é ora cercado de um lado, ora de outro, ora precisa forçar adiante, para não ficar preso - mesmo sem ter certeza se aquele era realmente a maneira certa. ora você precisa abrir caminho para si mesmo, ora abrir para outros que vêm atrás, ora seguir atrás de outrem, mesmo contra a vontade. Há caminhos conhecidos, outros desconhecidos; trilhas batidas e paredões de verde.

Já o verdadeiro zazen é como chegar em casa: nada mais a fazer, nem a dizer.
E isso não porque você está morto, ou em coma!