domingo, 31 de maio de 2009

A sempre-presente armadilha do "desapego"

Nada me irrita mais do que o papo do desapego. Por quê? Porque a maneira como muitos atraídos pelo budismo falam de desapego evidencia, claramente, uma mentalidade de ganho (end-gaining mentality, uma das expressões de Sawaki roshi).

Soa paradoxal? Não me surpreende: a coisa mais interessante do nosso comportamento é o quão paradoxal podemos ser - as diversas voltas tortuosas que fazemos - para continuar a fazer as mesmas coisas, mas sem parecer que as estamos fazendo.

E, de quebra, parecer que estamos melhores do que antes. A virtuose do virtuoso.

"Desapego" é a própria arte, o segredo do zazen. É difícil; é preciso fazer bilhões de vezes, é preciso "voltar" a todo momento, mas, ao mesmo tempo, é um lugar além do esforço e da ansiedade; um escorregão. Sentar em zazen é escorregar. É dar um passo em falso e flutuar no ar, durante um breve momento. Quão breve? É o chão que vem ou é você quem vai?

(Saído de uma sessão particularmente obscura e tortuosa de análise, meses atrás, falando do medo e da ansiedade provocado pelo pensamento de uma “morte súbita”, de um acontecimento que me pegue de surpresa, desço a rua com um guarda-chuva numa mão e uma sacola em outra. A rua úmida e verde da chuva recente, eu calçado com a minha bota impermeável, a calçada com o seu musgo, um passo forte demais, uma sola rugosa de menos, e zuuuum! Em um átimo encontro-me deitado no chão. Levanto-me e saio rindo que nem um louco.)

E então pensamos, todos, que o "desapego", como diz a doutrina budista, é a chave da felicidade. Pode ser. Isso, porém, não é exclusividade do budismo: a ataraxia foi pregada por estóicos e cínicos não muito longe daqui.

Gatos, elefantes, homens e iguanas sabem, intuitivamente, que de vez em quando é preciso jejuar. De vez em quando é preciso parar. De vez em quando é preciso fechar os olhos. Como diria a minha gurua alimentar, é um movimento e uma pausa.

Se você encontrar mel, não se lambuze com ele, ou vai acabar vomitando, diz o livro dos Provérbios. A comida, porém, é saborosa; comemos e nos deleitamos; comemos demais e passamos mal. A saúde, não se pode contar sempre com ela, embora o corpo aferre-se com paixão à vida, independente de qualquer dor ou desconforto. Os amores e os sentimentos, idem. A razão é fugaz, em muitos momentos, e a velhice e morte destino certo, por mais que queiramos e possamos postergá-los.

Duas posições: resignação ou revolta. Que venha, que aconteça, no final das contas tudo eh pó. Ou a revolta e a vontade de fazer diferente, de não se submeter, de mudar o que for preciso. Duas posições extremamente humanas, e sem elas nada seria feito neste mundo. O que elas tem em comum? A vontade, vontade de manter um centro sólido: “isso não me atinge”.

Ah é, cambacica? Vai pro mato pra ver se o aribu te pinica!

Temos a fantasia de não sermos atingidos, de ter – ou produzir, ou encontrar – algo que não muda e que não está sujeito às tantas vicissitudes. Daí, para ler/conhecer o budismo e ouvir falar do nirvana – o "incondicionado", o "improduzido", o "imutável" – são dois passos para criar a armadilha do desapego. O desapego pode, então, neste momento "mágico", virar o lava-mãos para o mundo: estou acima de tudo isto, como a flor do lótus por cima da lama do mundo instável e sujo.

Neste caso, o tal “desapego” não é tão diferente do caso, tão comum, de alguém que tem uma fobia – cavalos, raios, balões, palhaços – para não ter que lidar com coisa ainda pior. É muito melhor ter medo e ficar ansioso de uma coisa bem específica e delimitada, condensada em um objeto – que pode ser controlado – do que o afeto difuso e sobre o qual não se sabe muita coisa.
É melhor selar sua casa contra baratas, deixar que elas não entrem, não façam parte da sua vida; afinal, isto é fácil de fazer, tratam-se de pequenos artrópodes mais suscetíveis a venenos que a uma guerra nuclear.

Trata-se somente de uma analogia, mas tem os seus méritos.

Talvez o primeiro passo precise ser assim. Talvez seja preciso criar esta separação entre "samsara" e "nirvana" (muito cuidado nessa hora, com essas palavras), entre a vida ruim e a vida boa, o errado do certo, o puro do impuro, para algo começar. Não sei. Talvez seja preciso se “desapegar” forçosamente para desengatar a marcha. Também não sei. Sei que as coisas que são começadas uma vez assumem um movimento próprio - amores, vícios. As minhas mãos geladas pelo vento frio do oeste do estado também não serão o "karma" nascido de um começo sem começo? Não acreditem em mim, espinheiros nascem da minha boca toda vez que falo.

Mas, e então? O percurso do Sidarta não foi muito diferente do da gente não. Tá certo, ele fez seis anos de praticas ascéticas e meditativas: estudou com os caras mais überfucker da sua época e penetrou e passou por cada dos diversos jhanas e eteceteras. É um bocado de coisa. Mas nós, em nossas vidas, também fazemos um bocado de coisas – mesmo que não muito “nobres”, muitas vezes. Eu costumo ver o Sidarta-que-saiu-de-casa como alguém que faz um doutorado, ou vai pra África fazer trabalho voluntário, ou toma uma decisão importante na vida, ou decide largar mão da carreira para cuidar de um filho doente. Não tem muita diferença. Cuidado com o espinheiro.

Até o momento em que ele sentou-se debaixo da figueira e desistiu sem desistir, esforçou-se sem se esforçar.

Provavelmente ele já tinha feito isto antes, várias vezes. Dizem que ele sentou-se em dhyana lembrando da ocasião, quando criança, em que participava do festival da colheita com o pai. Era dia, estava quente, e ele brincava com as outras crianças. Cansado, sentou debaixo de uma arvore para descansar e fugir do calor. Ele viu o arado cortando a terra fértil, as minhocas vindo a superfície, os pássaros descendo para comer as minhocas. O solo, o calor, a vida vivendo em cima de vida, ele mesmo vivo. Por que é que, anos depois, depois de ter treinado com os melhores iogues e ter dominado vários estados mentais, Sidarta volta a sentar-se como sentou naquele dia quando criança – da mesma forma como nos sentamos hoje em dia?

domingo, 24 de maio de 2009

Imitação?


Uma vez, houve 500 macacos servindo a 500 santos buddhistas. Um dia os macacos decidiram imitar tudo que os santos faziam; então eles faziam zazen, imitando os santos com os seus olhos, narizes, bocas, todo o corpo. Dizem que desta forma mil santos praticaram zazen e alcançaram o satori. Eis porque eu quero preservar – mesmo que seja através da imitação – a semente do zazen.

Kodo Sawaki roshi

Algumas vezes as pessoas me perguntam por que eu pratico zazen, e eu nunca sei o que dizer

Deshimaru roshi: A resposta é diferente para cada pessoa. A primeira vez que eu perguntei a meu mestre, Kodo Sawaki, quais eram as vantagens do zazen, ele disse "nenhuma". Esta resposta despertou meu interesse de cara. Um dos meus amigos, porém, ouvindo a mesma resposta, levantou-se e foi embora. Eu fui capturado. Qual é a melhor resposta? Para algumas pessoas você tem de responder como se elas fossem crianças: "se você praticar zazen você vai ficar forte". Mas se Kodo Sawaki tivesse me respondido falando sobre força e boa saúde, eu ficaria menos impressionado e talvez não tivesse continuado. Aquela resposta, "nenhuma, nada", me impressionou tanto que eu ainda estou praticando zazen. De qualquer forma, o objeto do zazen é mushotoku, "sem ganho". Mas cada pessoa é diferente, e antes que você responda você deve olhar a pessoa cara a cara. Os méritos do zazen são infinitos.

180 perguntas e respostas, tanto em inglês quanto em francês, para os espíritos francófilos da sangha (Sodô, estou falando com você).

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Para mim, uma das mais marcantes passagens de Shantideva é o verso em que ele diz que a pessoa que morre e a pessoa que renasce são outras, não são a mesma. Assim, portanto, o único motivo válido que alguém pode ter para agir é a compaixão. Não há um “você” que continua em uma vida futura. “Você” termina na morte, e alguma outra coisa, algum outro ser, nasce, como um pai que dá a luz a um filho.

sábado, 16 de maio de 2009

Parte Um

Interessante. Eu não consigo me lembrar de quanto foi a época exata em que eu comecei a ouvir falar de budismo, de Buda, dessas coisas todas. Muitas pessoas sabem, e lembram do “choque de reconhecimento”, do sentimento de se sentir tocado, de escutar algo há muito tempo esquecido, ou algo recém-encontrado.

Imagino que tenha sido há muito tempo. Quando digo muito tempo, digo muito tempo, antes da adolescência, antes da puberdade. Talvez eu nunca tenha ouvido falar sobre Buda e budismo.

Desde cedo tive um interesse um tanto descabido por questões “místicas” e afins. Quando digo “místico” não estou me referindo a todo o blábláblá “nova era” e tal. Místico, no sentido lato da palavra: sobre o que se deve calar, pois não se pode – consegue - dizer, o “pfai inepfávell”.

Fiz catequese muito pequeno, durante dois anos. Lembro-me de algumas coisas, principalmente da catequista severa, mas amorosa; lembro-me de desde então sequer chegar a discutir os milagres bíblicos e outros afins, pois desde então achava os milagres bíblicos, a morte de Jesus e o Javé do antigo testamento uma história, como qualquer outra. Nunca me surpreendi com eles. Nunca senti assombro. Nunca compreendi.

Sentia assombro no final das tardes, no quintal de casa, quando eu via os morcegos e pássaros voando entre os pés de abacate e grumixama. Isto era muito, mas muito mais “assombroso” e real do que qualquer milagre forçado. Se “milagre” era qualquer coisa besta que saia da ordem real das coisas – transformar água em vinho, arbustos queimando – D’us é, no final das contas, um fantoche como outro qualquer, que precisa de prestidigitação para se fazer acreditar como criador do universo. E desse tipo de deus o inferno está cheio.

Não deixa de ser interessante que atualmente as leituras que mais fascinam (Harold Bloom, Jesus e Javé, e Jack Miles, Deus: uma biografia) lidam com Deus como um personagem, contraditório: uma mistura fascinante de contradição humana, de raiva e inocência divinas, falta de autoconhecimento, comiseração e piedade. É por esse Deus que aparece no livro de Jó que me sinto atraído, um D’us que se auto-exila: não por uma energia superior impessoal que cria e comanda o universo, uma razão cósmica, uma espécie de tao ocidental, mas sim por uma figura, uma personagem, um interlocutor que marcou o modo como pensamos e nos vemos a nós mesmos.

Fiz a crisma, que consistiu em um ano de esforços quase milagrosos da catequista para juntar uma dúzia de jovens uma vez por semana, com salgadinhos e refrigerantes. No dia da crisma até senti algo interessante, que no final das contas não passou de autosugestão sobre a descida do Espírito Santo. Tinha somente 15 anos. Quisera eu que ele realmente tivesse descido e eu fosse banhado com os dons do ES, principalmente o das línguas. Ia facilitar muito o meu estudo do grego.

Foi um contraste vívido com o dia em que tomei os votos no zen, um ano e meio atrás: depois de um sesshin de sete dias, depois de ver um amigo ter um colapso, estava febril, com rash cutâneo e com muito frio. Pediram-me para tirar a jaqueta “civil” que eu usava. Recusei, não queria ficar tremendo. Era de madrugada e o que eu mais queria era terminar e ir embora, deitar (quando eu pude realmente descansar tive uma febre forte durante 3 horas, que passou tão rápido como começou). Sanpai, sanpai, sanpai, e o “yes” soou forte e não consigo esquecer o olhar.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Não jogue fora os seus acentos, não (pelo menos não tão cedo...)

(se você não consegue ler muitas das fontes deste post, provavelmente você tem problemas de codificação. Não é necessária nenhuma fonte especial.)

Todos nós, praticantes zen-budistas - ou simpatizantes - temos que forçosamente aprender a fonologia de línguas estranhas e, muitas vezes, mortas.


Japonês, chinês arcaico, até mesmo sânscrito, dão suas caras nos vários textos, sutras e fórmulas com que nos deparamos, tantas vezes. Tantos de nós, que sequer chegamos a aprender latim na escola, como era comum décadas atrás, temos que nos virar com línguas que, muitas vezes, apresentam regras incomuns de acentuação e pronúncia.

Incomuns, certamente, mas incomuns para o falante habitual de português. Se já estranhamos a fala de nossos compadres portugueses, como não haveríamos de estranhar a fala de gente - e língua - morta há tanto tempo?

Não se preocupem, porém: várias pessoas ocupam grande parte da sua vida em estudar este tipo de problema. Filólogos, fonólogos, historiadores das línguas, linguistas, psicolinguistas e demais enfurnam-se em tabelas e textos e apresentam algumas coisas interessantes que podem ser de valia.

Algum de vocês tem o dicionário Houaiss em casa? Espero que sim, é um excelente pai-dos-burros. Procurem qualquer palavra. Vejam, do lado, entre colchetes, uma palavrinha com letras que podem ser familiares, mas são estranhas. Esta palavrinha é uma transcrição da palavra para o alfabeto fonético internacional da IPA.

É interessante passar uma tarde de um feriado nublado, como este, dando uma olhada em uma animação de flash mostrando os vários sons possíveis. Dá uma idéia da variedade de sonoridade das línguas, e nos relembra a dificuldade que temos em assimilar um som novo - principalmente quando ele não é parte da nossa lingua mater.

[Eu prometo: tentem aprender a ler sânscrito transliterado, com uma pessoa de sua escolha. Dá bons momentos de risada. Podem fazer escondido dos amigos.]

Transliterado? Sim, transliterado. Transliteração é o processo de converter um sistema de escrita em outro. Não digo converter um alfabeto (a, b, c, d, e...) em outro, pois embora latim e grego sejam sistemas de escrita de alfabeto, o sânscrito (devanagari) é um sistemas de escrita de silabário (ba, be, bi, bo, bu, bha...), e o japonês é muito parecido, neste aspecto.

Já a transcrição é a conversão de um sistema de sons em outros sistema de sons. A palavra francesa vin já está transliterada para a alfabeto português; ela pode, também, ser transcrita, como /vã/, ou como /vɛ/, no já mencionado alfabeto da IPA. A pronúncia é importante: gato pode ser transcrito, dependendo da sua pronúncia, como /gatu/. É mais fácil encontrar quem fale /gatu/ que /gato/.

Maka Hannya Haramita

Tomemos, então, o título dos versinhos que sabemos de cor, carinhosamente chamado de "Maka hannya" - não entremos no texto, pois a discussão se alargaria até os confins do mar ocidental. Maka hannya haramita é escrito com kanjis - ideogramas - japoneses, mas não se trata de palavras japonesas, mas sim de uma transliteração de um termo em sânscrito - maha prajñā pāramitā - baseada em uma transcrição. Soa difícil? Não é.

Os japoneses não tinham um sistema de escrita próprio até por volta do século IV da nossa era. Embora tivessem uma língua local, eles tiveram que tomar emprestado dos chineses os ideogramas para poder escrever a sua língua (a mesma coisa aconteceu com os antigos habitantes da Grécia, que importaram o recém-criado alfabeto fenício). Neste empréstimo ocorreu algo engraçado: muitos ideogramas adquiriram uma leitura dupla, a chinesa e a japonesa. A leitura chinesa (on'yomi) é utilizada até hoje, e de um modo especialmente importante para nós: o "maka hannya", muitos dos sutras, o nome dos mestres (na linhagem), o nome do nosso zendô (man ge san - 萬華山) e os nossos nomes-do-dharma são lidos com a leitura on.

Seigaku, por exemplo, é formado por dois ideogramas (静学) lidos em on'yomi. O sei de Seigaku muito provavelmente não é o mesmo do sei de Seidô, ou de Seikan, ou de Seigen. A única coisa que poderia dizer se são o mesmo é o ideograma: se for o mesmo ideograma, tem o mesmo significado. Se não, são palavras homófonas, com o mesmo som, mas significados diferentes - e o japonês é conhecido por sua extrema homofonia. Mesmo a procura num dicionário simples dá mais de duas dúzias de ideogramas cuja leitura é sei, e quase sessenta cuja leitura é gaku. Para dar uma idéia, é difícil encontrar mais de três palavras homófonas em português.

Para complicar, há também a leitura japonesa (kun'yomi) de cada ideograma. gaku tem a leitura kun como manabu, por exemplo. A leitura japonesa, porém, não significa que a leitura chinesa (on) não possa ser usada no japonês moderno. A universidade Komazawa, onde Kodo Sawaki deu aulas, é 駒澤大學, komazawa daigaku (daigaku pode ser lido como "grande ensino, grande erudição" - universidade).

O da Sodô (祖道 - "caminho dos patriarcas") é o mesmo de aikidô (合気道), e significa "caminho" (dao/tao em chinês), que é o mesmo de bushidô, de chadô, de iaidô, e até mesmo de Dôgen (道元). É o mesmo ideograma. Já sôdô (僧堂) - um nome dado para o recinto de meditação, como zendô (禅堂) - é outro ideograma e, portanto, outro significado: sala, recinto ("dos monges" ou "do zen", respectivamente). Enfim, muitos kanji com uma leitura /dô/: mais de 130 no mesmo simples dicionário.

Para brincar mais um pouco: "eletricidade estática" é seidenki (静電気), "parada eletricidade energia", o mesmo sei de seigaku e o mesmo ki de aikidô, uma palavra japonesa atual com uma leitura totalmente on'yomi. Será que existirá um seidenkidô (静電気道), um caminho espiritual da eletricidade estática?

Ho é diferente de que é diferente de hôô

Muitas línguas, ainda hoje, usam uma distinção que não costumamos usar no português: vogais duplas. O japonês atual é uma delas.

O latim clássico, por exemplo, da mesma forma que o grego antigo, usava esta distinção entre vogais duplas não somente para distinguir palavras, mas também para fazer a métrica poética. Com o passar do tempo, na evolução do português, a nossa maneira de fazer métrica mudou para a alternância de força das sílabas - sílabas tônicas; mas as sílabas tônicas são derivadas das vogais duplas de outrora.

O sânscrito também usava vogais duplas. Voltemos ao nosso exemplo: prajñā pāramitā. Este traço acima de três "as" é chamado macron, e foi um acento criado justamente para mostrar a duplicação do som de uma vogal. Duplicar uma vogal, dependendo da língua, é aumentar um pouco a duração dela, mas não muito. Na notação musical não se costuma botar um ponto ao lado de uma nota para aumentar em metade a sua duração? Uma vogal dupla funciona mais ou menos assim.

Podemos falar "gato" com as duas sílabas rápidas, com a mesma duração, ou então podemos duplicar o a. Costumamos fazer isto, mas não nos percebemos e nem chamamos de vogal dupla, pois não há uma outra palavra "gato" que difere na duração das vogais e que tenha outro significado, no português. /Gato/, /gāto/, /gatō/ e /gātō/ são somente maneiras diferentes - umas um tanto estranhas - de falar a mesma palavra.

Isto, porém, não é sempre assim. No japonês não é a mesma coisa falar ho (火) e (方), e muito menos hōō (凰).

Alguns já devem ter visto a já conhecida palavra arigatou (ありがとう) escrita assim, com ou no final, e em outros lugares arigatô, ou arigatō. São apenas formas diferentes de mostrar que a última sílaba é um pouco mais longa, como a nossa forma engraçada de falar gato, ou um francês falando de um bolo de arroz (sic), ou um japonês na Liberdade mostrando pro gato onde está a ração - ou também, é claro, alguém dizendo "obrigado" em japonês.

Neste sentido, nosso amigo Yôkô, com suas duas vogais duplas - perdoem-me se eu estiver errado - poderia ser referenciado, a partir de hoje, como Youkou. Teríamos nossa Sodou, o monge Meihou Genshou, ou o Seidou; praticaríamos aikidou, comeríamos com o ouryouki e nos sentaríamos no zendou.

A questão é que existem mais ou menos três sistemas atuais para a transliteração do japonês, o rōmaji. Um dos mais antigos utilizava este ou para descrever um o longo. O mais utilizado no ocidente, o sistema Hepburn (e suas variantes), coloca o macron (ā, ō) como símbolo de vogal dupla. Há outros dois sistemas no próprio Japão que utilizam o acento circunflexo (â, ô) para o mesmo propósito. Como nos teclados atuais é muito mais fácil digitar um circunflexo do que ficar procurando um macron na tabela Unicode, é evidente que o circunflexo pegou.

Quando lemos zendô, portanto, estamos lendo zendō: não uma vogal fechada, como o nosso /vô/ ou /metrô/, mas sim uma vogal dupla.

De volta, e lá de novo

E então voltamos ao "maka hannya", assim como os japoneses voltaram-se para os chineses.

O texto original é uma cópia em sânscrito que vai para a China e começa assim: ārya-avalokiteśvaro bodhisattvo mahāsattvo gambhīrāyā prajñāpāramitāyā caryā caramāa eva vyavalokayati sma pañca-skandhās... (o nobre bodhissatva mahassatva Avalokiteshvara, enquanto praticava prajnaparamita, viu que os cinco skandhas...)

Ela passa por um monte de traduções na China, e assim vai para o Japão, onde é lida - até hoje - com os caracteres chineses (chin: hanzi; jap: kanji) com a pronúncia chinesa importada (on'yomi).

Muitas das palavras no sutra encontram traduções disponíveis no "jachinês" da época: olhos, ouvidos, vazio, forma, etc. Detalhe para mārgā, o "caminho (óctuplo)", que é traduzido como 道 (chin: dao/tao, jap: ). Já os conceitos complexos vindos diretamente do sânscrito, linguagem filosófica, são inteiramente transliterados usando a forma da época, já que não encontravam correspondentes no japonês.

Atualmente os japoneses dispõem de dois "silabários", o hiragana e o katakana, (além do rômaji) para escrever. O hiragana são aqueles traços mais simples vistos em grande parte da escrita japonesa, e servem, em conjunção com os kanji, para conjugar verbos, declinar nomes, preposições, etc. Katakana é mais utilizado para transliterar palavras estrangeiras, entre outras tantas coisas.

Este truque não estava disponível para o pessoal daquela época, que então tiveram de fazer outra coisa, muito mais imaginativa. Maha prajñā pāramitā é transliterado, na fonética japonesa, como ma ka han nya ha ra mi ta e cada sílaba recebe um kanji, na leitura on'yomi, que não carrega significado, mas vale pelo seu som, seu valor fonético, sem nenhuma ligação "lógica" com a idéia. Estes kanjis que são usados pelo seu valor fonético recebem, muitas vezes, o nome de ateji. O mesmo acontece com anuttarā samyak sambodhi, "iluminação completa, perfeita e universal", que vira a noku ta ra san myaku san bo dai.

Sem esquecer, é claro, do exemplo mais óbvio: o "grande", "divino" e "incomparável" mantra, gate gate pāragate pārasaṃgate bodhi svāhā, que transliterado é gya te gya te ha ra gya te hara sō gya te bo ji so wa ka.

Enfim, é tão difícil para um japonês moderno entender quanto para a gente.