sexta-feira, 17 de abril de 2009

Forma e formalidade

Agora, com o negocinho de tradução aí do lado, todos podem ler este blogue... ou pelo menos a esdrúxula tradução automática. Mas é uma boa ferramenta: todos podem sugerir traduções melhores.

Estou tentando escrever, por uma semana, sobre uma espécie de koan que me foi apresentado semana passada. Sem sucesso. Koan, caso público, aviso oficial: foi bem público, pois estávamos dois na porta da comunidade, mas nada oficial, muito menos formal.


Falando em formalidade, vou juntar dois posts em um: Warner de um lado, falando da arbitrariedade das "regras" e formalidades na prática zen - um bom lembrete! - e Genshô falando que as árvores juntas crescem retas: a prática conjunta na sangha tira as nossas casquinhas, arrozes que somos nozes.

Pois bem, sempre que aparece gente nova pode-se perceber se ela está confortável ou desconfortável com algumas coisas na prática em um zendô. Tem gente que não liga, e simplesmente faz as coisas, e tem gente que fica meio que olhando de lado, desconfiada. Não tem problema. Eu também sou desconfiado.

Criei até o hábito de, saindo do zendô, dizer "agora é sem formalidade, podem ficar à vontade". Se eu não faço isso, a maioria das pessoas novas fica imóvel em seus banquinhos de plástico, e podem até mesmo esquecer de respirar - o que não é recomendável, enquanto vivo.

E não é raro que alguém pergunte pelo "significado" de algumas das formalidades do zen. E, sinceramente, eu não posso responder de plena certeza. Não posso dizer que pouco importa a mão direita ou esquerda em cima da outra no zazen, não posso dizer que não há uma questão energética hindu-ióguica sobre as posições, se há uma ressonância antiquíssima da conjunção de ida e pingala ao colocar a ponta da língua acima dos dentes da frente... não sei, não posso dizer.

Só posso responder, neste caso, pelo que ouvi, vi, li e experimentei. E digo: independente de tudo isso que possa ser, eis como as coisas são agora.

Tem coisas que eu creio que não possam ser tão arbitrárias. A postura do zazen, por exemplo, é uma delas. Eu realmente imagino que sentar-se de pernas cruzadas com a coluna reta é uma excelente postura, com seus próprios méritos. Se o pé ou mão esquerdo ou direito fica por cima ou por baixo, dou crédito para Dogen e sigo suas instruções. Mas o abade Muho, por exemplo, coloca questões interessantes e diz que pode-se alternar a posição das mãos e pés.

No kinhin, a postura das mãos da escola soto é diferente da escola rinzai. Quem vem zazenar com a gente, é postura soto.

Agora, se faz uma diferença, digamos, "metafísica" girar pela esquerda ao sentar, ou andar em shashu com o ombro direito pro centro, ou não passar na frente do altar, ou a maneira de segurar tigelas e talheres e arrumar o oryoki... não sei. Chuto que não.

Faz a diferença, porém, como Warner coloca, que se eu giro pra esquerda e meu colega gira pra direita podemos nos bater. Se alguém caminha na direção contrária, os outros tem de ficar desviando. Nas refeições formais, come-se junto, e é importante seguir os outros para isto.

São regras "arbitrárias" no sentido de que elas poderiam muito bem ser diferentes. A palavra arbitrário, aqui, serve-nos mais ou menos como serve aos linguistas. Nos tempos modernos a idéia de que uma palavra é, de certo modo, a coisa, caiu. As palavras - os significantes - são arbitrários com relação ao significado. A palavra "vinho" não tem nenhuma relação metafísica com o vinho-em-si, com uma "vinheidade". Tem, sim, uma história etimológica, um uso cultural, e uma série de significados que comporta. Podemos falar do vinho de outras formas, e podemos usar /vinho/ para outras coisas.

E ninguém questiona muito o porquê de usarmos /vinho/ para o vinho. Todo mundo - ou quase todo mundo - está de acordo sobre isto. Mas se passássemos a fazer parte da comunidade linguística que fala mandarim, o significante mudaria - e talvez um tanto o significado. Eis o que quer dizer arbitrário.

A forma do zen também tem sua história, também carrega significados, e como qualquer língua também pode mudar. Se os humanos de daqui três milênios tiverem dois braços e meio, próteses biomecânicas e anuladores de inércia como fonte de movimento, até a postura do zazen terá de mudar. Até lá, porém, recebamos a forma de quem a pratica e pratiquemos juntos.

Isso tudo é somente um bom lembrete porque os praticantes zen têm a tendência de ficar muito idealistas. Freud já apontava que existe uma proximidade muito grande entre os rituais religiosos e a neurose obsessiva. Para um hipotético visitante que dissesse que a forma é arbitrária e, portanto, pode ser de qualquer forma, eu diria "não" e o mostraria como andar em shashu com o ombro direito voltado para o centro da sala.

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